Testemunhos

Começo eu...

A realidade da maioria das pessoas que me rodeiam é uma realidade confortável, em graus diferentes e estruturas familiares diversas, mas ainda assim confortável, sem grandes histórias de dificuldades ou solidão ou abandono que se relacionassem directamente comigo. As dificuldades do mundo, embora me atingissem, eram distantes, no ecrã de uma televisão ou na mão de um mendigo que se esquecia ao virar da esquina.

Como acontece muitas vezes, foi preciso que a vida trocasse as voltas à minha realidade e que experimentasse sofrimento para estar mais atento ao mundo que me rodeia, e descobrir a humanidade que nos une a todos, ainda que à distância. As noticias deixaram de ser apenas noticias e os mendigos não eram apenas mãos, eram pessoas que por diversas circunstâncias sofriam como eu sofri, mas naturalmente não tiveram uma sólida estrutura familiar para os apoiar, condições financeiras para ultrapassar certos obstáculos ou a sorte de terem nascido numa terra de maior abundância e sem conflitos.

De olhos abertos para este novo mundo que assumi então, também, como meu, cheguei à A.A.S.U.L. em 2005, e combatendo a preguiça e arregaçando as mangas, comecei a visitar um lar de idosos no bairro da Serafina. Que esperava eu poder oferecer, que tinha eu para dar, como podia eu chegar àquelas pessoas que não conhecia e que em muitos casos nada tinham a ver comigo, como podia eu construir as pontes necessárias? Cedo percebi, passado o constrangimento inicial, que a minha presença, o meu tempo e a minha disponibilidade eram suficientes para me integrar no meio daquelas pessoas que nada tinham feito a não ser sobreviver até idades avançadas, para serem postos de lado, descartados, esquecidos.
Muitos contavam obviamente com o apoio da família que via naquele lar de boas condições, onde trabalhavam enfermeiras e auxiliares competentes, onde eram servidas todas as refeições do dia com qualidade, onde existia acompanhamento de um padre (apoio tão importante para aqueles que se apoiam na religião), onde tudo corria com naturalidade. No entanto, as boas condições de um lar nunca são suficientemente fortes ao ponto de fazer esquecer que não se está em casa, que se cumprem horários estabelecidos por outras pessoas, que se é obrigado a estar na presença de pessoas, as boas condições na chegam para fazer esquecer que num lar tomam conta das nossas rotinas.

A minha presença no lar limitava-se a todas as semanas assumir o compromisso de visitar pessoas que não me estavam ligadas, e no cumprimento desse compromisso, na minha visita, enquanto ajudava a distribuir os jantares, enquanto me sentava na sala de convívio para dois dedos de conversa, enquanto visitava nos quartos aqueles que estavam acamados, o sentimento de ter alguém que vem estar “connosco”, de haver jovens que se preocupam, de não se ter sido totalmente esquecido, pessoas que querem estar, querem ouvir.

É um trabalho de muita importância, porque implica sair de nós próprios e pensar nos outros, no facto de todas as semanas ainda que se seja atacado pela preguiça de sair de casa se combata essa preguiça e se saia, deste encontro de boa vontade, desta troca de experiências, deste gesto de humildade e amizade, naturalmente por um lado se anima uma existência mais ou menos triste e por outro se enriquece o espírito daqueles que se deitam ao fim do dia com o sentimento de terem feito qualquer coisa que perdurará, qualquer coisa indescritível e boa, ou pelo menos a tentativa.

Miguel Torres

3 comentários:

Anónimo disse...

gosto da ideia de aqui partilharmos aquilo que nos move dentro da asul. Afinal todos participamos num mesmo projecto, com um mesmo fim, mas com princípios diferentes.
E é tão bom irmos conhecendo as pessoas que partilham connosco estas experiências de voluntriado, de vida... Saber o que as move, o que as fez vir aqui parar, o que as faz continuar este trabalho...

Que esta seja a primeira de várias partilhas.

Mike, gosto de te ir conhecendo. Obrigada por te manteres fiel a ti próprio e às tuas convicções - Obrigada pelo que fizeste e fazes pela AASUL.

Mariana Góis

Malu Potes disse...

mike sempre a surpreender-nos! este testemunho e certamente o que vai na cabeça de muitos de nós! mas nem todos temos esse jeitinho tao caracteristico teu pa escrita...
gostei imenso, identifico.me imenso beijinhos e tambem te agradeço por tudo! baciii

Anónimo disse...

Caro Miguel,

Aproveito, desde já, para lhe felicitar pelo excelente testemunho dessa tão nobre actividade que é o voluntariado.
Também sou voluntária daquela grande instituição que é a Cruz Vermelha Portuguesa, no entanto, presentemente, o meu trabalho está ligado ao Jornalismo.
O meu objectivo é elaborar uma pequena reportagem subordinada ao tema da terceira idade em Portugal. Posto isto, e para sensibilizar o leitor para a actividade voluntária, gostaria muito de recolher o seu testemunho.
Caso seja do seu interesse colaborar com este projecto, agradecia que me contactasse através do seguinte endereço:

anaclpires@hotmail.com

Aguardo resposta,

A.Pires